Por: Alfredo Bertini
Enquanto maior negócio do mundo dos eventos esportivos e daí girar distintos mercados de uma economia global, entendo que os diferenciais desta Copa do Mundo não se resumem apenas à escolha da sede e ao período atípico. Toda uma engrenagem econômica e, em especial, profundamente midiática, que dá nitidez aos pesados problemas enfrentados pelo mundo atual, são questões outras que jamais deveriam ter sido ignoradas e até desdenhadas.
Para seguir na minha análise, num primeiro plano, reforço-me com os ensinamentos literários e recorro, mais uma vez, à genialidade do nosso “conterrâneo mais “maracanizado”: Nelson Rodrigues. Gesto até pertinente, justo pela identidade e conhecimento do autor em relação ao tema do futebol, através de crônicas e frases de peculiar inteligência.
Ademais, num segundo plano, para dar uma moldura especial a essa minha discreta impressão sobre o momento da Copa, reitero aqui todas lembranças possíveis de um ambiente atual de embates ideológicas acirrados, de zonas de conflitos bélicos e da ebulição pelo resgate de dívidas sociais historicamente arquivadas. Tudo junto e misturado, que deixa a humanidade num estado de tensão.
Com toda modéstia cabível ao que posso recorrer, pelo meu abuso cordial sobre a poesia de Cazuza (de novo, a literatura como recurso), acho que pelo “codinome beija-flor, consegui ouvir os tais segredos de um liquidificador”. Quero dizer com isso que, a essência que me move a entender o sentido dessa Copa, tem a impetuosidade de um vulcão, diante de tantos fatos diferentes. Como diria Nélson, não há como só enxergar a bola, na miopia ou cegueira de um viés para o entretenimento, que se esconde no sucesso do negócio econômico que é a Copa. Tanto faz se é para a FIFA ou outros podres poderes vinculados, desde a decisão por fazer o evento num país tão peculiar como o Qatar. As minhas e outras milhares ou bilhares de lentes carecem mesmo de serem usadas de modo mais aberto, posto que entende uma realidade mundial bem distante daquela que os organizadores e seus aliados insistem em ver.
De fato, nas últimas Copas, independente dos esforços de Japão, Coréia, África do Sul, Brasil e Rússia, os exageros sobre os “legados” que seriam alcançados pelo bom cumprimento do chamado “caderno de encargos” (aquele imposto pela FIFA aos anfitriões), resultou em muitos negados. Fiascos, para ser mais preciso. Investimentos medidos em bilhões de dólares, que não se traduziram nos retornos esperados. A proliferação de arenas multiusos de demandas superestimadas, em todos esses países, parece-me uma evidência, embora alertas tivessem sido destacados em referências de estudos, como no livro “Soccernomics”.
Claro que o investimento do Qatar num montante de US$ 229 bilhões, algo como 16 vezes a mais do que foi gasto na última Copa da Rússia, faz parte de um negócio, por mais que haja algum legítimo viés que ampare contestações. Afinal, os compromissos estão lá naquele caderno. Por si só, isso não impede que tal expressão econômica, que só vê o entretenimento promovido pelo espetáculo da bola, imponha restrições às liberdades democráticas. Se isso já não coube pela escolha indevida de um ambiente que não tolera esses meros exercícios de liberdade, pior ainda é barrar manifestações individuais ou coletivas das equipes possam acontecer livremente. Até fora dos estádios sustentaram suas arbitrariedades. Basta ver além da bola, o absurdo que restringiu o simbolismo de uma bandeira, que orgulha o secular senso de liberdade e democracia de uma nação cujo nome é Pernambuco.
Mundo em turbulência impõe reações humanas que promovem agitos tais e quais os dos liquidificadores. Os ruidosos segredos expressos por supremacismos, tabus e preconceitos estão agora escancarados. Numa Copa que se realiza em ambiente contrário a tudo que rola no mundo, de tão palpavel quanto perceptível. Mais do que isso, é mesmo seguir no espírito rodrigueano e crer que há muito a enxergar, além da bola que rola nos gramados cataris. A humanidade carece do respeito à diversidade e democracia. E isso pode ser estabelecido sem que contratos de negócios sejam afetados.
Por isso saúdo quem já enxergou além da bola. Um exemplo que mereceria ser seguido pelos demais participantes. Construiríamos dos erros políticos do Qatar e da FIFA, uma Copa marcada pela inflexão de valores que sempre estiveram à margem no futebol.
Se coragem existisse na CBF e no elenco, uma boa resposta seria algum dos nossos atletas entrar em campo com a vitima do último ultraje: a bandeira de Pernambuco. Alguém do elenco teria essa impetuosidade?
*Alfredo Bertini é economista, empresário e produtor do Festival Cinepe
*Texto publicado na Folha de Pernambuco, no dia 25 de novembro de 2022.
Foto: AFP