A primeira postagem de 2025 (quebrando um jejum de mais de 30 dias sem teclar por aqui) é para cumprir uma promessa antiga. Desde quando chegou em casa o livro Anatomia do Sarriá – Brasil x Itália, 1982, que eu prometi fazer uma resenha dessa obra genial escrita pelo jornalista italiano Piero Trellini. Não sou um leitor voraz. Leio devagar. Sem pressa. Paro muito por conta de outros afazeres. E quando o livro é bom, leio mais devagar ainda. Como se tivesse pena de acabar. Foi o que aconteceu com esse livro. Que trabalho de pesquisa espetacular de Trellini, viu?!.
Eu já vi e revi essa partida maravilhosa do dia 5 de julho de 1982 diversas vezes. Em todas, fico diante da TV torcendo para que algo diferente aconteça. Que Serginho tivesse feito o gol, depois de roubar a bola do Zico. Que Zoff não segurasse a cabeçada fulminante de Oscar, nos minutos finais do duelo (o grito de gol ficou entalado). Já assisti a muitos debates, entrei em várias discussões. Mas nada é igual às revelações feitas por Trellini. Ao final da leitura, você tem outra visão daquele confronto que fez o Brasil chorar.
Claro que adquiri o livro por conta do tema. Brasil x Itália de 82 foi a primeira tragédia que vi como torcedor. Vi todos chorarem por conta de uma eliminação de uma seleção canarinha, tida como favorita. Mas passar dos anos, revendo a partida, tendo um olhar mais peculiar ao duelo e, principalmente, após ler Anatomia, chega-se a conclusão: a Itália fez por onde merecer a vitória. E também mereceu levantar a taça, após uma primeira fase vexatória, só de empates contra Camarões, Polônia e Peru.
Anatomia do Sarriá é o nome do livro na versão portuguesa que se encaixa bem ao que Trellini executou (a versão italiana chama-se El partido). O jornalista esmiuçou tudo, detalhes por detalhes da organização da Copa do Mundo da Espanha, dos negócios escusos para acertar patrocinadores, das brigas de egos entre os dirigentes da Fifa. E em cada um deles, trazia um perfil e o lastro dentro do mundo do futebol. O homem não brincou em serviço. Foi uma pesquisa digna de prêmio.
O livro tem 494 páginas. Daí se tira a noção da amplitude de informações que pode ser absorvida. Para começar, ele já traça a história do israelense Abraham Klein, que conseguiu, enfim, realizar o sonho de atuar no Mundial. No Brasil x Itália, ele fez a primeira partida como árbitro principal de uma Copa e sua última como profissional. Momentos antes de viajar para a Espanha, toma conhecimento que seu filho foi convocado para guerra em seu país. Tensão imensa. Ele só se tranquiliza quando, momentos antes de pisar no gramado do Sarriá, recebe um telegrama do seu filho, dizendo que está tudo bem.
E segue assim para todos os personagens principais daquela Copa do Mundo e das duas seleções. Ele relata todos os passos que João Havelange fez para chegar à presidência da Fifa, como a Espanha foi escolhida para ser a sede do Mundial, os contratos milionários assinados, as barganhas feitas por dirigentes que só pensaram no lucro. Tudo bem contado, amarrado e brilhantemente escrito. Nada fica mal esclarecido.
Sobre as duas seleções, o relato de Pero Trellini chega a ser emocionante para os que ainda lembram daquela Copa do Mundo. Porque muitos trechos dos jogos, de entrevistas e outras notícias que foram vinculadas pela mídia na época ainda ressoam na minha mente. E Trellini vai fundo para explicar porque alguns fatos aconteceram. É como viajar no tempo, só que seguindo pelo subterrâneo.
A seleção brasileira é colocada no livro como uma super seleção em que os italianos não venceriam jamais. Mesmo a Itália jogando bem a partida anterior, contra a então campeã mundial Argentina, por 2×1,o Brasil era tido como favoritaço. A campanha do Brasil nas Eliminatórias e na própria Copa é detalhada, assim como jogadores importantes ganham destaque, mostrando suas qualidades, deficiências e o que fizeram para merecer a convocação.
É o caso do goleiro Valdir Peres, então camisa 1 do São Paulo. Telê preteriu Leão, que vinha sendo o capitão brasileiro nas duas últimas Copas. Mas Valdir ganhou a confiança do treinador ao pegar dois pênaltis de Britner, num amistoso contra a Alemanha, em Stuttgart. O Brasil venceu por 2×1. Aliás, foram três jogos seguidos na Europa. Antes dos alemães, a seleção derrotou a Inglaterra, por 1×0, em Wembley, e a França, por 3×1, em Paris. Como não ser apontada como favorita, hein?!
Na Itália, o drama foi bem maior. Afinal, a Azzurra estava, de fato em crise, numa polêmica gigante com a imprensa do País. Um dos fatores foi a decisão do técnico Enzo Bearzot fincar o pé e convocar o atacante Paolo Rossi para o Mundial. Isso porque, dois anos antes, Rossi havia sido acusado de envolvimento na manipulação de resultados da loteria, o que já mais foi provado. Mesmo assim, o atacante foi afastado do futebol por dois anos. Bearzot manteve sua convicção. Bancou Rossi encarou a briga com a imprensa. Os jornalistas compraram a briga de maneira mais suja possível: espalharam boatos e mais boatos. Um deles: insinuaram caso homossexual entre Cabrini e Rossini, que eram companheiros de quarto.
O clima pesou tanto que os italianos decidiram fazer greve de silêncio. Ninguém concedia entrevista. Apenas o capitão Dino Zoff falaria. E não para ser entrevistado. Ele seria um porta-voz. Foi nesse clima que a Itália atuou a primeira fase. Com a classificação à fase seguinte por conta do saldo de gols, a seleção foi para os jogos contra a Argentina e Brasil num clima ainda pior. As duas vitórias deram moral aos italianos, que venceram a Polônia e Alemanha, na final. O grupo estava fechado em torno do seu genial líder: Enzot Beazort. Na partida do Sarriá, Bearzot estudou bem direitinho o Brasil. Explorou suas falhas e contou com a estrela de Paolo Rossi, que marcou três gols na vitória sobre a canarinha. Sim, Beazort estava certo.
Anatomia do Sarriá é um livro espetacular e indispensável para quem ama futebol e mais ainda para quem tem um carinho especial para o Mundial de 82. O ponto fraco é a pobreza de imagens. Jogos históricos pedem fotos e o livro só tem uma: Zico de costas, com a camisa rasgada pelo seu marcador implacável e que também está na foto, Gentile. Mas nada apaga importância de Anatomia o Sarriá.