Por Ana Beatriz Venceslau*
Em mais uma temporada, o calendário aponta para a chegada do 8 de março. E o Dia Internacional das Mulheres volta a receber atenção, com felicitações e rosas espalhadas nas mais diferentes áreas da nossa sociedade. É o momento de celebrar aquilo que foi construído dia após dia até a chegada de mais um oito de março. Entretanto, sem esquecer dos bastidores difíceis e da desigualdade, que ainda acompanham a vida de tantas mulheres, seja no âmbito pessoal ou profissional. Dentro do mundo do esporte, esse desafio vem dobrado. Mas as superações insistem em se multiplicar, através de nomes e sobrenomes que fazem a história do futebol continuar a ser escrita em Pernambuco.
ELAS NA ARBITRAGEM
Um desses nomes é o de Deborah Cecília, de 36 anos, que é a única árbitra FIFA do estado. E conciliando as aulas de fisioterapia na faculdade e o trabalho que mantém numa empresa na zona sul do Recife, busca manter a sua rotina de preparação para as partidas, independente do horário. Além disso, realiza os estudos de cada jogo dias antes do evento. “Treino todos os dias, seja bem cedo antes de ir ao trabalho, ou pela noite, já no apagar das luzes. Minha rotina é bastante agitada, e a preparação para os jogos é sempre quando vejo a escala com dias de antecedência. Aí então, eu e minha equipe começamos a estudar as equipes envolvidas e vamos montando, em reuniões, nosso plano de trabalho até o dia do jogo”, detalhou a árbitra.
Para a experiente profissional, o machismo e o preconceito que ainda se fazem presentes no futebol poderão até ser encolhidos com o tempo, mas não extintos da sociedade. E a certeza para isso, na visão dela, está na forma a qual os dois gêneros, dentro da mesma função, são criticados e “punidos”. “Nascer mulher já é difícil, e no meio do futebol se torna ainda mais. É um meio onde pode até diminuir, mas nunca irá acabar com o machismo e o preconceito. A dificuldade vem em triplo, ou mais. Nas partidas de futebol, quando um árbitro erra, esse erro é esquecido em algumas semanas. Já a mulher é tão cobrada que não chega mais nem a entrar”, exemplificou.
ELAS NA SUPERVISÃO
Uma outra peça fundamental que faz a engrenagem do futebol local funcionar é Layanne Amanda, de 22 anos. Supervisora do departamento de futebol feminino do Náutico, é dela a responsabilidade para que “tudo dê certo” na documentação das atletas relacionadas para as disputas. E para que o envolvimento seja ainda maior no convívio, ela também faz questão de acompanhar a evolução do grupo nos treinos. “O dia a dia da minha função é cuidar de tudo o que envolve o futebol feminino do clube, mas principalmente para que tudo ocorra dentro dos conformes. Me preparo nos treinos, sempre busco estar presente, inclusive dentro do treino, observando as atletas e supervisionando o andamento de tudo. Em jogos, busco deixar tudo o que for de documentos, para quem for para partida, organizados previamente”, explicou.
Em paralelo com o caminho de construção que vem trilhando, ela também relembrou de alguns preconceitos que já vivenciou na trajetória dentro do futebol. E disse que quando isso acontece, o seu combustível para seguir é ampliado. “Eu já sofri com comentários do tipo: ‘tu deveria estar em escola trabalhando como professora, e não no futebol’, e também ouvi ‘que não dava para ser supervisora, porque eu não sabia entregar um papel’. Isso são apenas dois casos que já ocorreram comigo nessa estrada do futebol, infelizmente comentários machistas, e o pior é que já cheguei a escutar de outras mulheres. Porém, encaro isso como combustível para seguir lutando por mais espaços”, frisou.
Esse combustível serve ainda para abrir as portas para outras mulheres que se interessam em atuar na área, segundo Layanne. “É desafiador trabalhar no meio esportivo por ser mulher, mas é inspirador conquistar espaço cada vez mais e quebrar barreiras”, finalizou a supervisora alvirrubra.
ELAS NA FEDERAÇÃO
Até que seja iniciado, cada jogo necessita de várias mãos para que “saia do papel” e, finalmente, aconteça. Entre essas pessoas responsáveis rodada após rodada para que a bola role, está Adja Andrade, de 38 anos, que é jornalista e administradora de empresas, e atua há uma década na Federação Pernambucana de Futebol como Gerente de Registro e Transferência de Atleta e Treinador e também assessora de Protocolo de Imprensa durante as partidas.
Para ela, nenhuma das suas duas missões na FPF podem ser encaradas com tranquilidade, já que até mesmo os pequenos detalhes podem ser decisivos. Por isso também, muitas vezes ela dá o pontapé inicial no cronograma dos trabalhos dias antes.
“Não é tranquilo, tem pressão devido a regularização dos atletas que precisam estar no BID (Boletim Informativo Diário) para que os clubes possam contar com eles, principalmente em uma partida importante. E no trabalho de assessora de protocolo de imprensa, a dinâmica também é bastante trabalhosa. O trabalho inicia 48h antes do jogo com o credenciamento dos profissionais da imprensa. No estádio, chegamos com bastante antecedência para dar acesso, conduzir as entrevistas dos treinadores e atletas, e coordenar o protocolo de entrada dos árbitros e atletas titulares antes do apito”, contou.
Além de Adja, mais outras três mulheres integram o setor. E essas presenças em seu convívio profissional abrem vantagem trazendo um “ar” de maior segurança. “Viver em um ambiente que ainda é considerado masculino, tendo boa parte de mulheres junto comigo é bastante favorável, e até mesmo confortável para exercer as funções, apesar de que o ambiente de trabalho na Federação é ótimo e de muito respeito entre todos”, assegurou.
Porém, a situação não é a mesma na parte externa do trabalho. “Com torcedor, quase sempre. Quando estamos à beira do gramado, somos bastante xingadas. O torcedor não entende que estamos ali apenas exercendo o nosso trabalho”, revelou.
ELAS DENTRO DE CAMPO
Das histórias que são pura motivação em busca dos próprios sonhos, está a de Júlia Maria, que tem 23 anos. Recém-formada no curso de Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, ela abdicou, ainda que temporariamente, de atuar na profissão que é a sua paixão, para entrar em campo defendendo as cores do Santa Cruz na temporada atual em nome do amor. E vem superando seus próprios limites, além de reforçar a fé e causar uma reflexão acerca do papel que a mulher pode ter dentro do futebol feminino.
Com passagens por Íbis e Desportiva Perilima-PB no ano passado, foi no Tricolor do Arruda que a atleta natural do bairro dos Coelhos, no Recife, se reencontrou pessoal e profissionalmente. E agora, é lá que vive seus doces e amargos desafios. Alguns deles, intensificados no departamento feminino dos clubes brasileiros, de modo geral.
“Socialmente, o futebol ainda é bastante dissociado de uma profissão convencional, com direitos e deveres. E isso, claro, tem a ver com todo o elo afetivo e emocional que cerca o esporte. Quem o pratica profissionalmente acaba tendo, muitas vezes, que suprir as expectativas de trabalhar até mesmo sem receber. Na modalidade feminina, isso é ainda mais comum por todo o cerco histórico que envolve a prática esportiva pela categoria. Aos poucos, e com muita reivindicação e ocupação de espaço, o cenário está sendo mudado. A estrutura está sendo mexida”, ressaltou.
A insistência por essa troca, mesmo quando o cenário ainda está em mudanças, dá um sentido ainda mais amplo à sua vida. “O futebol me faz ter fé na vida, me aproxima dessa divindade, da minha fé, da minha crença…”, disse.
Tendo detalhado ainda mais “pedras” pelo caminho, Maria estendeu o leque para além do caráter feminino, e trouxe o embate que outras questões sociais trazem no dia a dia dela. E de tantas outras mulheres.
“Foram 16 anos até me tornar profissional e disputar a primeira competição oficial. A correria foi grande demais até aqui, por mim e por quem eu amo na vida. Quem vem da periferia, não tem direito de errar nas escolhas. Ou você e os seus fazem acontecer quando a oportunidade aparece, ou nada é feito. Ou você é direcionado e procura tomar as decisões mais corretas e possíveis, ou corre um grande risco de não ‘virar gente’, como muitos dizem. Mas o que é ‘virar gente’, afinal?”, questionou.
ELAS NA ASCOM
A importante missão de ligar o torcedor ao clube, seja por meio da imprensa ou dos canais oficiais da instituição, também vem sendo desempenhado por elas. No caso de Lindainês Santos, de 26 anos, depois de iniciar uma trajetória de entrega e responsabilidade. Ela chegou ao Sport em 2015 e foi estagiária na assessoria de esportes olímpicos do Rubro-negro. Dois anos se passaram e Linda, como é conhecida por quem divide o dia a dia com ela, foi colocada para assessorar o futebol feminino, e acabou sendo efetivada na nova missão, que se estendeu por mais duas temporadas, até que chegou no setor principal da “casa”, que é o departamento de futebol masculino, onde cuida, entre outras coisas, das redes sociais.
Por ter o seu dia a dia de trabalho envolvido diretamente com o elenco, a sua rotina e os seus horários seguem a mesma ordem que a dos jogadores, com exceção das horas que antecedem treinamentos e jogos. Aí é quando Linda entra em ação com seu protagonismo. “A rotina segue a mesma dos jogadores, precisando se apresentar uma hora antes do início de cada treino e duas horas antes de cada partida. Quando precisamos gravar material da TV Sport e coletiva para imprensa, utilizamos desse tempo que temos antes das movimentações diárias para não atrapalhar o atleta ou o treinamento. Em dias de jogos, a concentração é completa para os jogadores, então não fazemos nenhuma solicitação extra. A relação é muito tranquila para a produção desses conteúdos, seja algo mais sério ou algo mais descontraído; respeitando sempre a peculiaridade de cada jogador, porque tem quem gosta de falar, quem tem um perfil mais engraçado ou mais fechado. Nas viagens, também seguimos a mesma programação do elenco, com horários de refeições, e saídas para treinos e aeroportos”, detalhou.
Hoje, analisando a sua história no clube, que vem sendo construída há quase sete anos, Lindainês enxerga doses de respeito, conquistas e amizades como fundamentais para que o ciclo seja repetido mais adiante com outras mulheres. “Fico muito feliz de ter esse espaço, ser respeitada e ter conquistado a confiança e a amizade de tantas pessoas. Não é fácil, assim como trabalhar com futebol não é, mas a gente vai se adaptando e abrindo mais caminhos para mais mulheres que querem trabalhar em um meio tão masculino”, finalizou Linda.
ELAS NA COORDENAÇÃO
Com tantas mulheres atuando na “linha de frente” e nos bastidores do futebol local, também é por elas que o processo de “ponte” vem sendo construído. Também no Sport, por exemplo, quem faz isso é Nira. Aos 37 anos, ela desempenha o papel de coordenadora do departamento de futebol feminino do Leão. E segundo a própria, o único momento em que a tensão não se faz presente é após o apito final de cada partida, com a certeza de que tudo ocorreu de acordo com o planejado.
“Estou sempre na correria, tentando deixar tudo sob controle para o planejamento semanal dos treinos. Em dia de jogo eu só ‘relaxo’ quando termina, pois tenho que ser a primeira a chegar para ver se os uniformes estão corretos, agilizar gelo, o almoço das atletas, lanches, o pós-jogo, e por aí vai…”, detalhou.
Em meio a essa responsabilidade, a coordenadora carrega consigo o alívio em poder quebrar barreiras que, mesmo sem espaço, ainda estão de pé. “Eu encaro como uma coisa normal, é uma profissão como outra qualquer. O bom é que vamos quebrando barreiras que nunca deveriam existir, mas estamos sendo bem aceitas”, afirmou otimista.
ELAS NO JORNALISMO ESPORTIVO
E para registrar tudo isso com matérias especiais ou na transmissão de fatos diários, novamente elas ocupam a cena. O exemplo da vez é Marjourie Corrêa, que faz uma “casadinha” entre ser repórter das editorias de Cotidiano e Esporte na Folha de Pernambuco.
Aos 25 anos e com bastante experiência dentro do jornalismo esportivo, ela contou sobre o empenho que tenta nutrir, se colocando também mais à frente, ao pensar nas próximas mulheres que virão. “Eu tenho visto cada vez mais mulheres no esporte, e ao mesmo tempo que vejo com certa naturalidade, encaro como uma barreira vencida. Por saber que muita gente teve que se empenhar o dobro, eu me empenho o triplo, e tento sempre abrir caminho para que mais mulheres ocupem esse lugar”, comentou.
A repórter fez questão de deixar alguns conselhos para a próxima geração, além de frisar duas das violências que as mulheres ainda enfrentam hoje no ambiente que vive. “Um trabalho bem feito, bem desempenhado, vai te colocar exatamente onde você quer. E você – e somente você – é capaz de se colocar lá. Além de sempre tentar melhorar, como profissional e pessoa, evoluir, acompanhar as transformações e saber comunicar com diferentes públicos. O ambiente está pronto, o que talvez não esteja sejam hábitos antigos que insistem em permanecer. Infelizmente ainda somos subestimadas ou objetificadas. Mas o ambiente em si está pronto. E nós estamos mais que prontas para sermos inseridas nele”, definiu.
ELAS POR ELAS
Deborah, Layanne, Adja, Júlia Maria, Lindainês, Nira e Marjourie são alguns dos nomes que refletem o quanto as mulheres estão envolvidas no funcionamento da sociedade e também do nosso futebol. A cada linha que escrevem em suas histórias profissionais, nas mais diferentes áreas, automaticamente abrem portas e mais portas para aquelas que um dia sonham com uma realidade mais justa e igualitária. Para além de um pontual 8 de março.
*Ana Beatriz Venceslau é jornalista e apaixonada por futebol