Por Aílton Alfredo*
O futebol, de sua origem popular, se tornou uma das manifestações socioculturais mais significativas da sociedade. E assim o é, porque desde as primeiras notícias de sua prática, o futebol sempre esteve fortemente ligado ao sentimento de pertencimento à uma comunidade. O processo civilizacional a que se reporta o sociólogo Norbert Elias, ainda que não possa admitir-se linear, demonstra o desenvolvimento do futebol e sua importância social no controle da violência urbana medieval, recheada de combates e duelos pessoais. Na modernidade, o futebol foi inserido no âmago das comunidades trabalhadoras e, mais tarde, nas escolas, como elo com a nova urbanidade do processo civilizacional, em que pese, a presença, quase constante, de atos violentos entre praticantes e adeptos do futebol, sub temática que merece outro estudo.
Na atualidade, a dimensão do futebol ultrapassa a noção de espetáculo e o próprio sentido do lúdico, pois, se insere com muito vigor, no mundo dos negócios, ao ponto de se falar em um “indústria do futebol”, dado a importância que futebol assumiu na produção de bens e serviços, criação de milhares de postos de trabalho, enfim, proporcionar resultados que jamais poderiam ser economicamente ignorados. As principais ligas de futebol do planeta movimentam valores astronômicos, a exemplo da Premier League na Inglaterra. Basta se ver o “top 10” dos clubes mais valiosos do planeta, para se constatar que cinco deles são da Premier League. Na lista dos valiosos, o clube brasileiro mais bem colocado se encontra na 59ª posição, conforme se pode constatar no rol da Transfermarkt.
As entidades de prática do futebol de maior patrimônio, receitas correntes e de capital, fizeram substanciais alterações na gestão, e mesmo na personalidade jurídica. Nessa esteira de modernização passaram de associações civis para sociedades empresariais, limitadas ou mesmo anônimas como se desenha agora. Os investimentos nessas empresas de futebol alcançaram patamares inimagináveis e criaram um bloco de empresas poderosas, que torna quase impossível a competição daqueles empreendimentos que não integram o bloco.
As disparidades de investimentos, estrutura, formação, manutenção de elenco de atletas e equipes técnicas, jogam contra ao próprio espírito de competição, pois, desde o início dos campeonatos, já se pode afirmar, com certo grau de certeza, quem realmente disputa o campeonato e quem apenas luta para manter-se nele. A divisão de cotas de televisionamento e participação nas competições, aprofundam as disparidades entre clubes e regiões, a exemplo do que ocorre no Brasil, a ponto de desafiar movimentos organizados para lutar pela justa divisão das cotas entre os clubes.
Por outro lado, a imensa maioria de entidades de práticas desportivas, muitas delas pioneiras no futebol, está mergulhada no pântano da inviabilidade econômica, por insistir nos antigos modelos de associações civis, de caráter personalíssimo, quase sempre sob o comando de famílias e/ou grupos tradicionais que se revezam no poder, ainda que não tenham aptidão e formação para a gestão. A falta de profissionalismo e, às vezes, de ética na gestão, tem gerado passivos trabalhistas e tributários astronômicos.
Somente um estudo aprofundado do perfil do gestor dos clubes brasileiros, pode auxiliar no entendimento deste fenômeno social e econômico.
No Brasil, a partir do advento da denominada Lei Zico, (Lei nº 8.672/1993), se tornou possível um clube estruturado como associação civil, vir a se transformar em sociedade empresarial, ou constituir sociedade comercial, desde que o clube controlasse a maioria de seu capital com direito à voto ou, ainda, contratar uma sociedade comercial para gerir suas atividades desportivas, conforme previsto no Art. 11, daquele diploma legal.
A Lei Geral do Desporto, trouxe a mesma possibilidade, ao prever no seu artigo 27, § 9º: “É facultado às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. (Incluído pela Lei nº 10.672, de 2003)”. A hipótese de transformação dos clubes, de associações civis para clubes empresas, de qualquer natureza, ou seja, sociedades limitadas ou sociedades anônimas, sempre acalentou os sonhos de muitos, de torcedores à dirigentes, de atletas à empresários, embalados pelo mito da gestão empresarial perfeita em substituição às gestões de dirigentes não profissionais.
Os poucos exemplos podem ser listados de clubes empresas no futebol brasileiro, não alcançaram os de maiores torcidas, ou tradicionais no futebol, deixando aqui espaço para exceções que possam ser apontadas. O maior entrave para essa propalada guinada dos clubes para o mundo empresarial, sempre esteve atrelado ao passivo dos principais clubes de futebol brasileiros. Dívidas astronômicas, sejam trabalhistas, sejam tributárias e mesmo de outra natureza, impediram o nascimento ou prosseguimento de empresas do futebol; seja na criação, seja na transformação, o clube de futebol não desperta maiores interesses do mercado e seus investidores ávidos por lucros.
Os principais sites desportivos costumam relacionar os clubes maiores devedores do futebol brasileiro, a partir de critério puramente nominal e sem levar em consideração outros fatores que interessam ao mercado, como a capacidade de geração de novos produtos, marketing, e incremento das receitas correntes e o próprio patrimônio dos clubes e o seu potencial.
Nessa toada, um clube com uma dívida nominal de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) pode não ser tão atrativo aos olhos do mercado de investidores, como um clube com dívida nominal de R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões de reais). Uma complexa análise das capacidades econômicas e financeiras de cada clube é que pode indicar o melhor caminho.
A influência do liberalismo no futebol, pode trazer bons frutos e tirar o empreendimento da inércia do clubismo e do amadorismo da gestão, sem dúvidas. Mas, não pode significar um vale-tudo, ao ponto de imaginar uma espécie de privatização das associações clubísticas, de forma linear. É claro que, transformar o clube em empresa é uma mera faculdade, mas os ventos levam para um clima de tábua de salvação das gestões. A Lei da SAF, Sociedade Anônima de Futebol, tem sido, por muitos, assim festejada. Acredita-se que, agora, com o advento da Lei nº 14.193/2021, se pode deixar com as associações civis ou pessoa jurídica já criada (sociedade limitada, por exemplo) as responsabilidades civis e criminais pelo histórico passivo tributário e trabalhista, e entregar ao empresário todos os ativos, livres e desembaraçados de quaisquer ônus.
Acredito que, a Sociedade de Futebol, SAF, criada ou transformada pelo clube, apesar da previsão legal de suas obrigações, nos artigos 9º ao 12, não se livrará do instituto jurídico da sucessão empresarial das obrigações da sucedida associação civil.
Num aparente choque normativo ou antinomia, entre a Lei da SAF e o Código Tributário Nacional, deve prevalecer o já sedimentado na doutrina e na jurisprudência, Instituto da Sucessão e, assim, a sucessão recairá nas obrigações tributárias, por força do Art. 133 do Código Tributário Nacional- CTN: “A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato.
A última consequência da sucessão empresarial aqui referida, é relativa ao campo administrativo ou propriamente do direito desportivo. Ora, os atletas e seus direitos desportivos acompanham a nova entidade, agora empresarial, e será essa SAF quem inscreverá os atletas nas competições e, por isso mesmo, há de suportar eventuais efeitos das cobranças por dívidas, por meio do sistema jurídico da FIFA, que, inclusive, impede a inscrição de atletas nas competições sob sua jurisdição. O Art. 15.4 do Código Disciplinar da FIFA trata da matéria.
Por outro lado, a Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD, tem percebido o expressivo aumento de casos, exatamente porque o fair play financeiro, seja por imposição da entidade máxima do futebol, seja por um imperativo ético e das novas regras de compliance a que estão submetidas às SAF, não permitirão a perpetuação das dívidas dos clubes, nem absorverão fórmulas legais “milagrosas” para esconder o passivo dos clubes da luz do sol.
O grave entrave do passivo das associações clubísticas e das empresas que surgiram com a Lei Zico e a Lei Pelé, continuam a desafiar os mais engenhosos legisladores a buscarem essas fórmulas. A fixação das responsabilidades da SAF e o regime de execução de dívidas criado com a Lei nº 14.193/2021 são claros exemplos. Talvez não exista uma linear e definitiva solução para o passivo dos clubes, mas, o instituto jurídico da recuperação judicial, se apresenta como melhor trilha e poderia ser condição sine qua non para exercer a opção da mudança da natureza jurídica das associações de futebol e migrarem para a Lei da SAF. Recuperação Judicial abraçada, inclusive, pela SAF.
Não custa nada aqui, porém, registrar o baixíssimo índice de sucesso das recuperações judiciais no Brasil. A taxa de empresas recuperadas oscila entre 1% e 16%, enquanto nos países integrantes da OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, essa taxa gira em torno dos 67%.
A previsão legal de repasse de 20% da receita corrente (líquida?) e de 50% dos dividendos para quitação das dívidas é a pérola máxima desse passe de mágica legal, pois bem conhecemos os balanços empresariais e as complexas manobras contábeis, que indicam projeções bem pessimistas para os credores e para as associações civis, pois a SAF lhes repassaria 20% da receita corrente líquida, quando houvesse, e poderia, infinitamente, não distribuir lucros, “reaplicar” os resultados nos negócios e fazer sumir os dividendos no mar dos conceitos contábeis e das liliputianas quizílias judiciais.
Esse é o panorama da situação jurídica dos clubes de futebol no Brasil, que buscam a modernização de suas gestões, administrar seus passivos e tornarem-se fortes e competitivos. O longo caminho que tem trilhado, partindo das tradicionais associações civis, passando pelos vislumbres das Lei Zico, da Lei Pelé e, agora, nos braços da Lei da SAF, os clubes de futebol no Brasil pouco (ou nada) discutiram ou mesmo vislumbraram no cooperativismo uma possibilidade de aliar o lúdico, o sentimento de pertencimento que domina o cidadão-torcedor, próprios do futebol raiz, que transforma o clube de futebol preferido numa extensão do eu no mundo de cada um.
*Ailton Alfredo de Souza
Advogado
Membro do Conselho da SBDD- Sociedade Brasileira de Direito Desportivo
Membro fundador do Instituto Pernambucano de Direito Desportivo
Membro do Conselho Fiscal do SICREDI – Pernambucred.
Mestre em Direito pela UNICAP
Doutorando em Ciências Jurídico-Filosóficas pela UC- Universidade de Coimbra.
Juiz de Direito aposentado. TJPE/Juizado do Torcedor.