Há exatamente quatro décadas, com apenas 8 anos, eu fui um brasileiro e fui muitos. Diria milhares, com o coração esfacelado. O sangue correndo quente nas veias. Os olhos brilhando. Eu fui um e fui muitos, sim. Fui milhares amando o futebol como se fosse minha primeira namorada. E quis o destino que a paixão surgisse numa derrota. Um revés histórico que ganhou nome, a Tragédia do Sarriá. Toda sua atmosfera me fez mergulhar intensamente no mundo do futebol. E nada me retirou dele. Graças a Deus!
Na TV, a seleção brasileira pisava no gramado do estádio Sarriá, na Espanha, para enfrentar a Itália, valendo vaga na semifinal da Copa do Mundo. Na minha primeira Copa, o Brasil tinha uma baita equipe. Enquanto os italianos… Viviam sob uma desconfiança que parecia durar a eternidade. Minha multiplicação surgiu a partir do momento em que a bola rolou, quando o planeta inteiro estava diante da TV para ver o que viria a ser um grande jogo. Como brasileiro, fui os milhares ansiosos, convictos que venceríamos. Mas eu também estava em campo.
Fui Valdir Peres sendo surpreendido por uma cabeçada mortal de Paolo Rossi, quando o jogo estava apenas começando e as equipes se estudando em campo. Deu um frio na espinha ver a rede balançar. Eu fui Zico dando um passe para Serginho, de cara para o gol, perder uma grande chance. Grito de gol em vão. Uma ansiedade que o fez ganhar vida e ter vontade própria para sair da garganta como se o gol fosse verdade.
Fui Zico driblando seu marcador, lançando a bola de forma primorosa para Sócrates, que foi rápido mais do que o costume. E naquele instante, eu fui o Doutor batendo cruzado, rasteiro, surpreendendo o experiente goleiro Zoff. Alegria que não cabia no sorriso. Onde eu iria botar tanta energia? Não parei um segundo diante da TV. Foi então que me tornei a camisa do Zico rasgada pelo implacável Gentile. Cadê o VAR, minha gente? Não havia. O árbitro não marcou o pênalti claro.
Então, eu me transformei em Cerezo. Doeu o peito um passe cruzado tão bobo, infantil, rente a grande área. Não acredito que fiz isso. Senti-me um ídolo que beijava a lona. Rossi, inspirado e ligado, roubou a bola e fuzilou Valdir Peres. Não chamei palavrão na hora porque minha mãe proibia. E também porque não quis perder tempo. Fui Serginho batendo o centro e recomeçando o jogo. Porque era preciso recomeçar. E manter a fé.
Era metade do segundo tempo. Virei Paulo Roberto Falcão. Com a bola dominada, visão de jogo, cabeça erguida, foco no gol. Percebi a passagem de Cerezo, puxando a marcação italiana, abrindo o caminho para o empate. Acertei o balaço. Zoff nem viu onde ela foi. Gritei intensamente. As veias pularam em todo corpo. A garganta quase estourou. O empate era o placar que a gente queria.
Mas ainda tinha jogo. A Itália não se abateu. Dois minutos depois, me tornei Júnior, embaixo das traves, enquanto a Azzurra tinha um escanteio para bater. A defesa repleta de brasileiros e a bola vai parar nos pés de Paolo Rossi, que fez o terceiro. E eu ali, pedindo impedimento, quando justamente era eu quem dava condições para o italiano fazer o gol que deixava a Itália na vantagem.
Faltavam 15 minutos para a partida acabar. Eu me tornei todos que estavam em campo, querendo fazer a seleção vencer a todo custo. Eu também era todos que estavam diante da TV, roendo a unha, alucinado, ansioso e sofrendo com aquela derrota que parecia um pesadelo. Fui Éder cobrando no final do jogo. Arrancando as placas publicitárias para aquela cobrança de escanteio fechada na tentativa do gol olímpico. Bola alçada na área e fui pra área ser o Oscar. Testar a pelota. Era o gol de empate. Mas Zoff segurou em cima da linha. “Ah, miserável!”.
Fim de jogo. Voltei a ser um, fisicamente. E milhares, emocionalmente. Diante da TV, vi a primeira seleção brasileira se despedir da primeira Copa do Mundo que assisti. Via o Brasil chorar. E eu sem entender nada. Não chorei. A luz da ingenuidade de um menino foi quem fez juntar os cacos do coração dos que estavam comigo, acreditando cegamente na vitória. Senti o impacto daquilo tudo. A tristeza das pessoas nas ruas. O mesmo assunto durante a semana. O mesmo vilão (Paolo Rossi) e as mesmas lembranças de um jogo fantástico que segue vivo na memória de uma geração há 40 anos.
Brasil x Itália da Copa do Mundo da Espanha foi, e ainda é, muito importante na minha vida. Foi um divisor de águas. Foi um duelo que me mostrou o quanto o futebol mexia com meu sentimento e o quanto me aproximava das pessoas.
Para o Brasil e o Mundo, aquela derrota para a Itália pode ser chamada de Tragédia do Sarriá. Mas, para mim, foi a construção de um amor eterno.
Eu te amo, futebol!