Quando eu era garoto e via meu time na disputa do pênalti, sentia a barriga gelando. Ansiedade do cão. Mas pensava: “Isso é coisa de criança. Quando eu crescer, passa”. Que nada. O amor ao futebol aumentou. Toda disputa de pênalti, mesmo estando alheio aos times, causa expectativa… Um pólo norte na barriga. E para o jogador, será que causa? O ex-zagueiro Estevam Soares me falou certa vez que detestava cobrança. Morria de medo daquele caminhar entre o meio de campo e a marca penal. O silêncio do estádio o angustiava. Valei-me!! Deve ser horrível. Pois bem, o escritor pernambucano Mário Rodrigues resolveu pegar exatamente esse momento para escrever o romance A Cobrança, lançado em 2018, pela editora Record. A cena é justamente a última cobrança de pênalti da final da Copa do Mundo, entre Brasil e Alemanha. Enquanto caminha para a bola, o capitão brasileiro vai refletindo e relembrando sua saga entre os anos de 1988, quando a Constituição foi promulgada, e 1992, na Era Collor, que trouxe um caminhão de problemas.
Mário Rodrigues entrelaçou a história brasileira, entre as dores políticas da vida do personagem central e o amor pelo futebol que o fez chegar até um momento decisivo para o esporte brasileiro, da mesma forma que um camisa dez encontra o caminho para o centroavante fique de cara para o gol. E a bola na rede é a nossa consciência, refletindo cada lance que ele descreve. As outras obras de Mário Rodrigues são “A curva secreta da linha reta” (2011), “BRAZIL, 2014” (2012), “A galega”(2014). Em 2016, venceu o Prêmio Sesc de Literatura na categoria Contos com o livro: “Receita para se fazer um monstro” (Ed. Record), obra que também seria finalista do Prêmio Jabuti, 2017. Abaixo, um papo com Mário Rodrigues sobre suas paixões: livro e futebol.
Marcelo Esporte Clube – Quem nasceu primeiro, a paixão por futebol ou a paixão pelo livro? Quando nasceu o desejo de entrelaçar os dois elementos?
Mário Rodrigues – Essas duas paixões se mesclam (e me formam) de maneira tão orgânica que eu não saberia definir quem surgiu primeiro. São, na verdade, dois alicerces que me sustentaram e direcionaram. Reza a lenda familiar que aprendi a ler antes de ir à escola e que já jogava bola desde os primeiros passos. Literatura e Futebol, fui. Quando começo a escrever livros, sempre essa dobradinha me acompanha, mas de maneira esporádica – sentia que devia uma narrativa maior que as entrelaçasse. Surge A Cobrança.
MEC – E a inspiração para fazer A cobrança… Como surgiu?
MR – A Cobrança nasce de um desafio de forma e conteúdo. Todos conhecemos o ditado popular: “Futebol, Política e Religião não se discutem”. Eu queria exatamente subverter essa lógica. E implodi-la. Já que, como brasileiros, essas três esferas são tão importantes na nossa realidade. Eviscerar esses tópicos seria uma forma interessante de ver as entranhas da sociedade que nos forma.
MEC – Quais são suas referências como escritores e como cronistas esportivos?
MR – Como escritores, de modo geral, me filio a Graciliano Ramos e Rubem Fonseca, no Brasil; Cormac McCarthy e Raymond Carver são estrangeiros a quem admiro. Na crônica esportiva, é inescapável o Nelson Rodrigues e seu irmão Mário Filho (autor de O negro no futebol brasileiro). Mas Xico Sá e Eduardo Galeano também leio com bastante admiração e gosto.
MEC – Porque usar o futebol para contar a história política do país?
MR – Hoje não mais, porém houve tempo em que acreditei que o futebol brasileiro seria a inspiração perfeita para o que chamaríamos de povo brasileiro (mesmo reconhecendo o caráter amorfo desse termo). O ápice deste esporte no Brasil – três finais de copa seguidas – apontava para a possibilidade de que, como nação, poderíamos nos unir de forma compacta e coesa, fazendo de nossas diferenças o nosso poder. E assim como nos gramados, na vida em geral, poderíamos rivalizar e vencer as grandes nações do mundo. A Cobrança chega como o ocaso desse sentimento – algo que prometia tanto e não vingou. Quando o futebol da Seleção, através de seu capitão, Saúva, está se despregando da sociedade brasileira – é esse instante que o livro flagra. Uma pena.
MEC – Você do futebol de hoje ou prefere aquela época em que nasceu sua paixão? Ou você não vê diferença?
MR – A plástica do jogo mudou bastante, sobretudo depois do Barcelona de Gardiola. Apreciava mais aquele futebol onde a coletividade era a base para os gênios brilharem com seus diferenciais – não a anulação dos craques. Também incomoda saber que houve época em que o meio-campo da Seleção era formado por jogadores pertencentes a identidades de clubes brasileiros: Zico (Flamengo), Sócrates (Corinthians), Cerezo (Atlético Mineiro), Falcão (Internacional) – algo, hoje, inimaginável. Mas é a roda do futebol como engrenagem de um sistema capitalista maior. Não precisamos lamentar ou ser saudosistas.
MEC – Qual o efeito colateral que o 7×1 da Alemanha causou no torcedor Mário?
MR – O 7×1 concentrou um sentimento que vinha, em mim, difuso. A sensação de que a Seleção (durante muito tempo nossa principal referência-identidade como povo brasileiro) estava perdendo a relevância. A derrota em 1982 foi traumática, porque havia a ideia de que uma nação foi ferida. A derrota em 2014 virou chacota, foi a constatação de que aquilo era apenas um esporte. Não éramos nós, o povo, era apenas um time de atletas. Logo, a Seleção se divorciou da nação em 2014.
MEC – Acredita no hexa do Brasil em 2022?
MR – Como brasileiro e torcedor gostaria muito que o hexa viesse… torcerei para isso. Mas acredito que não será dessa vez. Penso que falta material humano mesmo, talento. O Brasil só ganhou copa quando havia um conjunto de jogadores excepcionais. Não é o caso da seleção convocada. Não há sequer um jogador excepcional – e, na subjetividade própria do jogo de futebol, isso faz toda a diferença.